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quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Não deveria ter confiado...

Sempre morei sozinha, tinha um trabalho,que ganhava uma mixaria e que ficava pela manhã e pela tarde, como se costume, pela noite, assistia os programas e filmes que passavam na televisão de vinte polegadas que tinha alguns anos, mas ainda dava para o gasto e fazia minha cerimônia, onde ficava me empanturrando de salgadinhos cheios de substâncias sem algum nutriente favorável ao organismo e bebendo refrigerantes cheios de açúcar e sal que me matavam a cada gole que eu insistia em tomar e aparentava suas consequências em algumas partes do meu corpo, como o meu rosto e minhas pernas. Em todos esses rituais noturnos, me pegava sempre, depois de muitos goles e muitas mordidas, dormindo no sofá e acordava na madrugada de olhos vermelhos e cerrados, encarando por alguns minutos a bagunça que fizera e subia cambaleando as escadas, até o meu quarto.
Como sempre, acordava, ia para o quarto, dormia mais um pouco, ouvia o despertador irritante tocar, ia para o banheiro tropeçando e batendo nas cômodas do quarto, sentia a água gelada descendo pelo corpo até chegar ao seu último destino, me vestia e tomava o café da manhã tão simples que se resumia em apenas uma xícara de café amargo, e saía para mais um dia maçante no meu trabalho de assistente em uma loja de conveniência, loja tão vagabunda quanto aquelas lanchonetes beira de estrada de filmes. Mas naquele dia foi diferente. Enquanto arrumava as coisas da espelunca, um moço que logo me chamou a atenção e admiração,alto, belo, com os cabelos penteados de forma harmoniosa, barba feita, vestido como quem não possui compromissos, entrou e no silêncio do transe que me dominava, ele quebrara toda a quietude ali existente com sua voz melíflua perguntando onde ficava uma certa rua na qual não me lembro, os olhos tão cativantes de um verde tão profundo que tocava minha alma. 
Enquanto ouvia a pergunta diversas vezes, a voz dele ecoava em minha mente sem surtir efeito no meu corpo e eu não conseguia tirar meus olhos daquela obra prima que se fazia presente na minha frente, até que ele chegou bem perto, deu um riso e perguntou o meu nome, aquele momento foi tão mágico, o respondi num sussurro de tão hipnotizada estava pelo seu encanto. Tudo aconteceu como algo perfeito, ele me convidou para um lanche em uma lanchonete próxima e conversamos, tudo aquilo foi especial, nos despedimos, trocamos contatos e coisas do tipo e eu voltei ao meu trabalho com uma felicidade tão grande que não conseguia esconder meu sorriso.
Já pela noite larguei a televisão e as besteiras que comia por longos telefonemas com aquele indivíduo que me encantava de um jeito tão especial. E assim se seguiu os dias, sempre nos encontrando e com os telefonemas contínuos.
No fim de semana, ele disse que iria viajar e não poderia haver contato algum comigo, então logo pela noite fui ler um livro e acabei pegando no sono. Depois de um tempo dormindo, senti uma respiração bem perto do meu rosto, uma respiração pesada como a de um touro bravo que provavelmente estava me observando a um bom tempo, acordei meio que confusa e minha visão logo reconheceu quem estava na minha frente, aqueles olhos...
Aqueles olhos verdes agora estavam avermelhados, com um ar selvagem e desafiador de quem está prestes a fazer algo malévolo e eu os encarava, assustada, minha vontade era de gritar, mas minha boca com uma mão a pressiona-lá não a deixava... Mas, quem iria ouvir numa hora daquelas? A mesma pergunta deveria ter sido feita por aquele ser de um modo bem diferente...
Ele passava suavemente uma lâmina fria pelo meu rosto e depois rasgava a camisa de lã, que eu usava naquela noite fria, com uma veracidade absurda, me puxou pelo pescoço com a mesma mão que tapava minha boca e eu lutava contra aquela força intensa. O conto de fadas virou um pesadelo. 
Então, abrindo a porta do banheiro com um chute, ele me enforcava no chão e então me chamava de burra, e era isso que a voz no meu cérebro gritava "Como eu pude ser tão burra? Nas ligações sempre falava de mim e sempre de mim, dizia tudo, onde eu morava, o que eu fazia, cheguei até a dizer sobre minha conta no banco e afins! Burra! Isso que eu era, uma estúpida, encantada com um cara que nem conhecia direito." ele agia com uma calma bárbara e aquilo me deixava mais desesperada e a minha luta mais vã. De um movimento preciso, com as duas mãos pressionada brutalmente em meus braços, ele mostrou no espelho o quão eu era estúpida a ponto de acreditar em tudo que ouvi, e bateu minha cabeça contra o objeto e daí algo me convidava a partir, a sumir daquele lugar por um instante e esquecer a dor insana que pesava sobre as minha cabeça, braços e pescoço... meu olho piscava tentando continuar, resistir, minha garganta seca me maltratava, minha respiração tão falha e só sentia em minha boca o gosto doce do sangue escarlate que descia pelas feridas da minha testa e escorria para o resto do meu rosto como uma escultura onde se põe todos os sentimentos raivosos em uma arte.
Sem forças para resistir aos maus tratos que me atingiam, eu me esvaia e minha fraqueza predominava em todas as minhas entranhas dizendo claramente o quanto eu estava derrotada. Um barulho bem ao longe assustou o agressor e ele me largou em meio ao cacos do espelho e saiu, a minha visão naquela hora já era turva, mas consegui ver que algo o havia feito recuar, algo o havia feito-me ser livre mais um pouco... A única coisa que me passava pela mente era que o sangue e a dor que insistia em me alertar eram doces, e eu ansiava por sentir mais porque me fazia ficar viva, era o que sinalizava que um pouco de vida ainda restava nas minhas células e eu não queria, só por hoje, eu não queria que a dama de preto fizesse presente e me convidasse a uma última valsa, não ali, não agora.
Um súbito relampejo de consciência me atingiu e eu estava com meu rosto em reflexos aos cacos que insistiam em cortar-me e fazer presente o sangue que dava cor àquela cena de carnificina, como se houvesse ocorrido uma batalha histórica... e ocorreu. Eu levantei, tropeçando, cambaleando, me cortando e me apoiando nas coisas a minha volta, segui até o chuveiro e de roupa e tudo, dei um mergulho na água gelada... ela parecia entrar por dentro, até nos ossos, mas levava embora toda aquela vermelhidão nos meus membros e mostrava com clareza os meus cortes.
Saí, com muita dificuldade, mas saí, e por fim peguei alguns curativos para cobrir as feridas. Depois daquele dia eu nunca mais consegui ver as coisas com os mesmos olhos e muito menos consegui me socializar em meio a tantas mentiras contadas a sangue frio. E só digo a você o meu único erro: Não deveria ter confiado...

Minha autoria.

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